“Provocante... Descreve de forma persuasiva o fenômeno de pertencer a dois mundos distintos e, conseqüentemente, não pertencer a nenhum.” - The New York Times Book Review.
por Mauricio SantoroNo início da década de 1990, Barack Obama cursava Direito em Harvard e foi eleito editor da famosa revista do curso - o primeiro negro a ocupar o cargo. A novidade teve repercussão nacional, algo que ele atribui "à fome dos Estados Unidos por qualquer sinal otimista da frente de batalha racial" e Obama foi convidado a escrever um livro. O resultado foi Dreams from My Father, que a Editora Gente agora publica no Brasil como "A Origem dos Meus Sonhos" (clique no link para baixar o capítulo 1).
A má tradução do título desvirtua o fio condutor da obra. Ela é a história de um rapaz tentando descobrir quem é, e o que pode esperar da vida, a partir da busca por entender a trajetória extraordinária de seu pai, também chamado Barack Obama. A trama tem ressonância mítica: lembrei da Odisséia, de Têlemaco dizendo que gostaria de ter conhecido o pai, e partindo para encontrar Ulisses.
Obama pai era filho de próspero fazendeiro do Quênia e após juventude um tanto relapsa, conseguiu bolsa de estudos para a Universidade do Havaí. Lá apaixonou-se por uma moça americana, branca, casaram-se e tiveram um filho. Na época, 1960, casamento inter-racial era proibido em metade dos estados dos EUA. Obama deixou a nova família após dois anos, para cursar doutorado em Harvard. Não retornou. Voltou ao Quênia, casou-se outras vezes, teve diversos filhos e seguiu carreira de tecnocrata e alto funcionário do governo, com alguns revezes. Só viu novamente o rebento americano uma única vez, quando o menino tinha 10 anos.
O livro do filho começa pela narrativa de sua infância e juventude, dividida entre o Havaí e a Indonésia, onde morou por algum tempo acompanhando a mãe e o padrasto, natural daquele país: "Cresci sentindo-me bem com a solidão, o lugar mais seguro que conheci". Não é para menos. Seus anos de formação foram marcados pela busca incessante de identidade e o sentimento de estar no meio do caminho entre brancos e negros, pobres e classe média, primeiro e terceiro mundo. A indefinição custou sofrimento e problemas com drogas: "Eu estava tentando crescer para ser um homem negro na América e ninguém à minha volta parecia saber exatamente o que isso significava."
Obama foi para a universidade em Los Angeles e Nova York, e militou no movimento negro. Alguns de seus colegas de turma vinham dos guetos, outros eram de famílias de classe média. Descreve com argúcia os conflitos que os dilaceravam, o desejo dividido entre se integrar ao sonho americano de prosperidade e a consciência das injustiças raciais, junto com o ódio que provocavam. A palavra central é identidade, a angústia do que poderiam ser numa sociedade em que os caminhos tradicionais da fazenda ou da fábrica foram substituídos por um mundo em que "a maneira de viver é comprada numa prateleira ou encontrada numa revista... Cada um de nós escolhia uma fantasia, uma armadura contra a incerteza."
As opções de Obama o levam para Chicago, para trabalhar com ONGs ligadas à organização comunitária entre os negros da paupérrima zona sul da cidade, area detroçada por crime, crise econômica e conflitos raciais. Seu mentor e patrão era um ativista judeu, Marty Kaufman, que lhe dá conselhos valiosos: "Com os sindicatos do jeito que estão, as igrejas são a única estratégia na cidade." Mas Kaufman desperta pouca simpatia humana e não consegue estabelecer vínculos com os negros. Obama narra então seus esforços, frustrações e alegrias no trabalho de base, principalmente nas áreas de habitação, emprego e educação. Seu modelo é o recém-eleito Harold Washington, primeiro prefeito negro de Chicago: "suas realizações pareciam delimitar o que era possível. Seus talentos, seu poder, davam a medida para minhas esperanças". Quantos garotos negros devem se sentir assim ao olhar o Obama de hoje!
A cidade era um poço de polarização política - Nação do Islã, gangues, choques entre negros, italianos, irlandeses, coreanos - e é notável a empatia de Obama em compreender as origens dos ódios, mas sem ceder a eles, logrando manter uma perspectiva mais ampla, de diálogo. Ao mesmo tempo, torna-se um admirador de figuras controversas como reverendo Jeremiah Wright, cujas explosivas declarações raciais deram trabalho ao atual pré-candidato presidencial. Obama ficou tão impressionado com Wright que batizou seu segundo livro com o título de um sermão do reverendo, "A Audácia da Esperança".
A parte final de "A Origem dos Meus Sonhos" é o fechamento de um ciclo. Obama é aceito por Harvard para cursar Direito e se despede de Chicago, aproveitando as férias para conhecer o Quênia e os parentes africanos. Ele busca as origens e descobre coisas incômodas sobre o pai e o avô - como o passado de colaboracionista deste último com o governo colonial britânico - mas também aprende muito sobre si mesmo e suas potencialidades.
O livro tem um breve epílogo, com Obama já formado em Direito, voltando ao trabalho comunitário se casando. No ano seguinte ele foi eleito senador estadual em Illinois e pouco depois foi para o senado nacional - apenas o terceiro negro na história americana a conseguir tal proeza. o resto é História, e está em curso. Espero que apenas no começo.
"A Origem dos Meus Sonhos" é um livro espetacular. Bem escrito, riquíssimo em observações humanas sobre os mais diversos temas - a situação dos negros nos EUA, as esperanças frustradas da classe média, a natureza da política de base e com comentários pertinentes e originais sobre a Indonésia e o Quênia. Ao mesmo tempo é revelador da personalidade do homem que pode se tornar um dos mais poderosos do mundo. Creio que hoje ele não escreveria um livro tão franco sobre suas inseguranças, fragilidades, medos e vícios. Sorte nossa que ficou este.
Origem: todososfogos
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