"O Príncipe" tornou-se notório após ter sido lido por diversos vilões da história como Benito Mussolini, Napoleão Bonaparte, entre outros.
"O Príncipe" de Nicolau Maquiavel
por Voltaire Schilling
Caído em desgraça em 1512, aos 43 anos de idade, depois de ter prestado por quinze anos seus serviços ao Conselho dos Dez, órgão da Senhoria da República de Florença, encarregado da Guerra e das Relações Exteriores, preso e torturado, Nicolau Maquiavel (1469-1527) foi forçado a retirar-se para a herdade da sua família, a Villa Macchiavelli, num lugar chamado de San Casciano Val di Pesa. O escritório dele então tornou-se uma usina de textos sobre idéias políticas que espalharam a fama dele pelo mundo inteiro.
O gênese do "O Príncipe"
Apesar do abatimento e do vexame por ter sido supliciado ele não se deprimiu por muito tempo. Como escreveu ao seu amigo, o embaixador Francisco Vettori (carta de 10/12/1513), com quem mantinha ativa correspondência, decidiu-se por abraçar profundamente às letras. Ele freqüentara as potências do seu tempo, conhecera monarcas poderosos, arcebispos, cardeais e o próprio papa, além de um número significativo de tiranos e de condottiere, capitães-de-aventura, como se chamavam os chefes mercenários. Vira de perto a ascensão e queda de muitos deles. Como por igual apreciava os letrados, tais como o historiador Francisco Guicciardini (+ 1540), seu amigo, e um dos maiores escritores políticos da sua época, ninguém melhor do que ele para associar a prática à teoria.
Depois de passar o dia convivendo com os aldeãos e os freqüentadores da taverna, à noite Maquiavel, trajando-se com boas roupas, recolhia-se para a sua biblioteca para "encontrar-se com os grandes", isto é, pôr-se a ler os autores clássicos: Tucídides, Cícero, Júlio César, Tácito, Tito Lívio, e tantos outros mais, imaginando dialogar com eles todos. Portanto, sua obra política resultou dessa simbiose entre o empírico (a experiência dele como diplomata) e o conhecimento histórico acumulado (os livros da política greco-romana). Na construção dele do Cosmo Político, Deus estava banido, pois o que ele quis retratar era o império dos homens, um cenário mais próximo da selva do que dos espaços divinos.
Método e intenções
O método empregado por ele não se diferenciava das lições da escolástica: após uma afirmação inicial, segue-se uma série de considerações que confirmavam o enunciado, sempre fazendo menção à sabedoria dos antigos, às lições que os estadistas daqueles outros tempos, conscientemente ou não, deixaram como herança a ser resgatada. Tal como os artistas da sua época que recolhiam os vestígios dos grandes escultores, pintores e arquitetos do mundo clássico, inspirando-se neles para moldar ou erguer suas obras-primas, o mesmo devia ser feito com as ações extraordinárias dos antepassados ilustres.
Enche então páginas e mais páginas de exemplos retirados dos tempos da Grécia, da República ou do Império Romano, ou ainda de acontecimentos ocorridos mais recentemente nos reinos da França, Espanha, ou nas outras cidades italianas, para ilustrar e esclarecer seus pontos de vista.
Havia um tanto de ironia e soberba no fato de Maquiavel, banido e afastado de tudo, um homem que fracassara, quer dar aulas aos príncipes (isto é, a qualquer chefe de estado), desejando soprar-lhes no ouvido receitas de artimanhas e truques de sobrevivência. Mas assim foi, porque, antes de tudo, a situação da Itália o exasperava.
Como ele confessou, na falta de outros cabedais para presentear as altezas, sem "cavalos, armas ou tecidos de ouro, pedras preciosas", que tanto as agradam, só lhe restou deixar-lhes "o conhecimento das ações dos grandes", lançando-se como "um dos mestres de um pensamento novo" (Claude Lefort – Le travail de l´ouvre Machiavel, Paris, 1986).
Portanto, torna-se claro no seu prefácio que ele não se dirigiu ao povo, às massas diríamos hoje, mas aos chefes-de-estado, aos líderes de partido, ou candidatos a tal. Eles é quem faziam a história. Do mesmo modo que muitos deles já dispunham de um manual de falcoaria, da arte da caça, ou ainda da estratégia, passariam a dispor doravante, devido ao engenho de Maquiavel, de uma arte da política. Viu-se ele deste modo como um instrutor de águias e não de cordeiros, o mundo dele era a selva dos fortes, lugar onde Deus não estava presente.
"O Príncipe", dedicado a Lourenço de Médici (+ 1519), duque de Urbino, é curto. São 26 capítulos, ou lições, que chegam, dependendo da edição, a mais ou menos umas cem páginas. Tornou-se um dos manuais de política mais editados, traduzidos e lidos no mundo inteiro. Depois da "Comédia" de Dante (+ 1327), é a mais universalmente famosa obra escrita por um italiano.
Das formas de governo de conquista
"não existe modo mais seguro para conservar tais conquistas, senão a destruição. E quem se torne senhor de uma cidade acostumada a viver livre e não a destrua, espere ser destruído por ela..." ("O Príncipe", cap. V).
Ao invés de reproduzir a conhecida forma encontrada na filosofia política dos antigos, que separava os regimes em Monarquia (o governo de um só), Oligarquia (o governo de um grupo) e Democracia (o governo de muitos), Maquiavel identifica apenas dois tipos de regime: as repúblicas (o governo em comum) ou os principados (em geral governo de um homem só que pode exercê-lo por herança, por indicação, ou pela força). A instabilidade maior acomete o principado "novo", porque a chegada repentina ao poder de um senhor desconhecido sempre termina por desgostar os que antes estavam no governo sem que ele tenha ainda a adesão ou a bem querença do povo.
Agrega-se a isso o fato da nova ordem ter redobradas dificuldades em estabilizar-se quando implantada num território estranho, com outra língua e costumes. A melhor e mais segura maneira de dominar uma região conquistada – como ensinaram os romanos - é ir habitá-la ou colonizá-la. A ocupação militar direta, insiste Maquiavel, é instável e muito custosa: a "guarda armada é inútil". Há, pois, regras de dominação que devem ser seguidas sem as quais o príncipe facilmente perde o que conseguiu pelas armas. Não há da parte dele nenhuma censura no fato de haver a invasão de um país. O florentino acha "natural e comum o desejo de conquistar" e, quando há sucesso na empreitada, poucos príncipes são censurados por isso.
Repúblicas
Governo da coisa pública (administrado por um conselho, um senado, consulado ou podestá).
Principados(*)
Governados por um só (que o recebeu por herança, indicação ou tomado à força).
(*) Maquiavel faz referência igual aos principados eclesiásticos, aqueles dirigidos diretamente pela Igreja Católica e por seus bispos, pois a Santa Sé, naqueles tempos, também exercia poder temporal.
Da estrutura e essência dos governos
Em geral, os governos dividem-se em dois tipos. Num deles o príncipe é um chefe absoluto, sendo que os que o cercam são seus servidores, praticamente seus servos (é o que imperava no mundo oriental). No outro, o príncipe um tanto que compartilha sua autoridade com uma gama diversa de nobres, aparecendo como um presidente de uma confederação de barões e duques, tendo por vezes que conviver com um parlamento.
Na primeira situação é tal como se dá no jogo de xadrez: basta dar um xeque-mate no rei que tudo desaba, a partida estará ganha. Derrubando-se o príncipe absoluto, um déspota oriental por exemplo, tudo cai nas mãos do agressor. A antiga criadagem simplesmente muda de senhor e se põem às ordens do vitorioso, como aconteceu com os sátrapas persas de Dario (+ 330 a.C.) em relação a Alexandre o Grande ( + 323 a.C.).
Na outra, no sistema que predominava na Europa, pode ser mais fácil a vitória, mas é mais difícil assegurar o controle do reino porque cada barão irá resistir ao seu modo ao ocupante, independentemente do rei estar aprisionado ou morto.
Seja como for, a melhor maneira de conservar um estado dominado, sem precisar destruí-lo inteiramente, é permitir que ele mantenha suas próprias leis e costumes, preocupando-se apenas em criar um núcleo colaboracionista que auxilie no domínio e na arrecadação dos tributos. Deste modo, o ódio e o rancor da população ocupada é atenuado ou volta-se primeiramente contra os que ajudam o invasor e não contra o próprio conquistador. Maquiavel aponta que aqueles que viveram em liberdade são os que menos se conformam com a perda dela, portanto a situação mais segura para o ocupante é destruí-los completamente.
Formas de governo
Autoridade absoluta (ou despótica) - O príncipe exerce o poder diretamente, seus ministros e funcionário são seu servos.
Autoridade mitigada - O príncipe governa por meio de conselhos, parlamentos ou assembléias de nobres.
O Príncipe e as novas conquistas
"não haver coisa mais difícil para cuidar, nem mais duvidosa a conseguir, nem mais perigosa a manejar, que se tornar chefe e introduzir novas ordens." ("O Príncipe", cap. VI)l.
Quando se trata da fundação de um novo principado, a situação de sucesso depende muito de dois fatores: Virtu i Fortuna, a virtude e a boa sorte do príncipe. A implantação do novo regime deve muito à ocasião, ao príncipe saber aproveitar bem as oportunidades que surgem a sua frente, saber navegar quando as correntes estão a seu favor.
O maior desafio que um príncipe se depara na fundação de uma nova ordem das coisas deriva do fato que ele tem contra si todos aqueles que eram beneficiados na situação anterior, contado a seu crédito apenas com os simpatizantes ainda tímidos, que não sabem ou não puderam ainda sentir-se beneficiados pela nova situação. Os que são contra ele são muito fortes ainda e os que lhe acompanham não tem certeza do sucesso do empreendimento e tendem facilmente a desistir. Exatamente por isso, Maquiavel afirmou (cap. VI), numa sentença que se tornou célebre, que "somente os profetas armados venceram" enquanto que o destino dos profetas desarmados é o fracasso. (*)
Profeta desarmado - É historicamente derrotado visto que quando não mais acreditam nas profecias – o povo é volúvel - ele não tem meios que se manter no poder.
Profeta armado - É o que vence, pois quando o desencanto ocorre, o povo se desilude, ele consegue mantê-lo na crença pela força das armas.
Por igual pode-se chegar à cabeça do estado por graças da boa fortuna, como é o caso daqueles que caem na simpatia de um poderoso que o torna representante local dos seus interesses. Mesmo não sendo dotado de nenhuma legitimidade que não seja a vontade do seu patrão, ele consegue ficar a cavaleiro das coisas se demonstrar astúcia (o terceiro grande elemento maquiavélico de sucesso de um príncipe, além da virtude e da fortuna), de saber jogar as facções locais umas contra as outra para que ele possa reinar soberano sobre elas. Governar é também a arte de fazer amigos, de ter aliados, de se fazer amar ou temer pelo povo, "de vencer pela força ou pela fraude", de manter-se no poder a qualquer custo.
(*) O termo "profeta" deve ser compreendido como o fundador de um estado, de uma religião ou um reformador social, não necessariamente como um conquistador.
O Príncipe, o crime e a política
"Não se pode, ainda, chamar virtude o matar os seus concidadãos(...) tais modos podem conquistar o poder, mas não a glória." ("O Príncipe", cap. VIII)
Há ainda uma "terceira via", além da virtude e da boa sorte, para galgar-se ao poder num estado: o crime. É o caso de muitos tiranos que, apoiados pelas milícias, deslocam por meios sangrentos (em conspirações ou golpes seguidos de assassinatos) os antigos mandantes e assumem o poder para si.
Para Maquiavel, que circulou por muito tempo pelas cortes, não há nenhuma sansão a fazer desde que a porção de maldade inicialmente utilizada para ascender não mais se repita. A vilania e o crime, por vezes, são degraus para chegar-se ao topo, mas depois de nele instalado recomenda-se ao príncipe desfazer-se da escada suja de sangue que ele teve que galgar. As "maldades negativas", ou maldades verdadeiramente ruins, por assim dizer, são aquelas que não cessam nunca, "que aumentam ao invés de extinguirem".
É sempre melhor, aconselhou, praticar a ofensa de uma só vez, de imediato, enquanto que os benefícios devem ser feitos aos poucos. O mal, tal como um purgante, deve ser aplicado instantaneamente, todo de uma só vez pela goela abaixo, enquanto que o bem deve ser ministrado aos poucos, como se fora uma iguaria, apreciada colher a colher. O mesmo se dá com as injúrias. Para ele, o mal – inerente ao homem - é um instrumento da política que somente deve ser condenado se aplicado de modo exagerado ou fora de propósito, prejudicando o bom andamento do governo, trazendo-lhe instabilidade. Há, pois um mal "bom", o que impõe a ordem, e um mal "ruim", o que gera desordem a largo prazo.
O mesmo diz ele da guerra. Não se pode evitar uma batalha, apenas consegue-se postergá-la. E quanto mais tempo se demora em entrar na refrega é pior. Enquanto existir a humanidade haverá guerras, a questão é tirar o melhor proveito possível delas. Este tipo de disposição, indiferente ao apelo pacifista do cristianismo, é que levou seus críticos a dizerem que o florentino estava a serviço de Lúcifer (*)
(*) Shakespeare, pela voz de Ricardo III, seu mais famoso vilão, quando ainda Duque de Gloster, num monólogo, associa claramente o florentino aos tipos sem piedade: "Sim, eu posso matar, matar, enquanto rio (...) Ao camaleão posso emprestar cores, muito mais do que Proteu mudar de formas, a própria escola do sanguinário Maquiavel servir de mestre." (in "Henrique VI", 3ª parte, ato III, cena II).Do mal - É "positivo" quando aplicado de um só vez, como um choque. É "negativo" quando se estende por muito tempo, tornando-se insuportável ( algo como "terrorismo de Estado").
Da Guerra - É inevitável. É melhor declará-la logo do que mais tarde. Pode se contornar, mas nunca se evita uma guerra.
O Príncipe e o Povo
"...a um príncipe é preciso ter o povo como amigo, pois, de outro modo, não terá possibilidades na adversidade." ( "Príncipe", cap. IX)
Um principado também pode ser constituído pelo povo( uma democracia) ou pelos grandes (uma oligarquia). O povo procura escolher para dirigi-lo um príncipe da sua estima que cuide em não oprimi-lo e impeça com sua autoridade que os grandes o façam. O objetivo do povo é sempre mais honesto do que o dos grandes, ele apenas não deseja ser espoliado ou humilhado pelos ricaços e demais poderosos. Além do mais parece ser mais fácil para um príncipe conviver com a hostilidade dos grandes, porque são poucos, do que ter contra si o povo inteiro.
Seja como for escolhido, pela gente comum ou pelos fidalgos, o príncipe sempre tem que ter em mente garantir a amizade do povo, ganhando-o para si, bastando para tanto adotar medidas de proteção dos seus cidadãos. Entre outras razões, isto é importante porque é a amizade do povo, e somente ela, é que poderá garanti-lo em caso de adversidade. Se o líder se mantêm ativo, com coragem, sustentado sua posições com bravura, o povo o acompanhará.
É certo que o inimigo sempre hesitará em atacar uma cidade, tendo que submetê-la a sitio por um bom tempo, se a população que a habita é fiel e quer bem ao seu governante. Mais tarde ou mais cedo ele se verá obrigado a recuar, batendo em retirada com vergonha. Todavia, é bom levar em conta que se são muitos os que se oferecem para tudo no tempo de paz, quando os ventos da guerra começam a soprar e o cheiro da morte atinge os muros da cidade, certamente bem poucos serão então encontrados.
O Príncipe e o Exército
"Os principais fundamentos que o Estado têm, tanto os novos como os antigos ou misto, são as boas leis e as boas armas"("O Príncipe", cap. XII)
Era costume naqueles tempos as cidades ou reinos italianos recorrerem às tropas de aluguel. Para tanto, contratavam um condottiere (um condutor de homens), um chefe mercenário, igualmente chamado como capitano di ventura, capitão-de-aventuras, que trazia consigo, devido a sua fama de valentão, um bando de homens armados sujeito às suas ordens, cujos serviços ele colocava à disposição.
O Condottiere ( Paolo Ucello)
Maquiavel os considerava uma desgraça para o estado, pois eram destituídos de qualquer espírito cívico e não tinha nenhuma identificação com a bandeira que abraçavam. Eram tropas "desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis... vis entre os inimigos", queriam o soldo quando impera a paz, mas fugiam quando o perigo de verdade se aproxima.
Evidentemente que ele tinha em mente como exemplo de excelência o corpo de legionários do tempo da antiga Roma, formado pelo sal da terra do Lácio, homens que lutavam com ardor patriótico e que ergueram bem alto, na glória, as águias imperiais. Para ele foi a recorrência às armas mercenárias que colocaram a Itália a perder.
Ainda que os soldados assalariados combatessem nas pequenas guerras travadas entres as cidades, havia muito de simulação. Um condottiere encenava cercar uma cidade enquanto um outro, ao serviço dos sitiados, não atacava-lhe o acampamento. Por vezes, tudo não passava de um faz-de-conta patrocinado pelo infeliz contratante.
Havia ainda um outro agravante em se manter na dependência dos soldados da fortuna. Se o patrão deles era derrotado, voltavam-se contra ele e terminavam por saquear a cidade que juraram defender. Se fosse vitorioso, acabava prisioneiro deles, pois os louros haviam sido alcançados pelo chefe dos aventureiros e não por seu empregador.
Esta é uma das razões do príncipe dever estar sempre com a cabeça voltada para a guerra. Necessita praticar a caça como exercício ao tempo em que a usa como momento para o estudo da geografia local a fim de melhor conhecer o país, suas defesas naturais e suas deficiências mais gritantes. O domínio da topografia é um meio caminho para o bom sucesso das armas, seguido de leituras da história para estudar como os grandes se comportavam nas batalhas, examinando as causas das vitórias e das derrotas deles.
Quando os valentes exércitos estrangeiros assaltaram o país, quando Carlos VIII, rei da França, atacou a Itália, em 1494, foi um salve-se quem puder, um fiasco completo. Os bandos mercenários se puseram a correr.
Além disso, um comandante de aluguel sempre é um perigo ás instituições. Se tiver alguma qualidade ele inevitavelmente desejará algum dia vir a tomar o poder, abatendo o patrão e usurpando-lhe o principado, como se deu em várias oportunidades da história recente do país. Tudo isso contribuiu para que a Itália se visse "percorrida por Carlos VIII, saqueada por Luís XII (ambos reis da França), violentada por Fernando (rei da Espanha) e desonrada pelos suíços", que a reduziram "à escravidão e à desonra".
Os estados verdadeiramente livres (*) só se mantém assim tendo suas próprias tropas, contando com sua gente, apelando para os seus, formando os quadros de oficiais junto aos seus cidadãos e nunca confiando numa espada de aluguel. E quem tem boas armas, tem sempre ao seu lado bons amigos.
Enquanto a Itália não resolvesse esse problema dificilmente ela poderia se livrar do jugo dos bárbaros (isto é, dos reis estrangeiros que a assaltavam).
(*) Entenda-se que o termo "liberdade" daquela época estava circunscrito ao direito reclamado pelas cidades-republicanas de se verem livres da ingerência externa bem como a independência política quanto ao autogoverno republicano. O direito que elas tinham de ter o governo que melhor entendessem (Q.Skinner – Os Fundações do Pensamento Político Moderno, vol I, S.P., 1996).
O Príncipe e seus Dilemas
[ a doutrina do maquiavelismo]
"...é necessário ,a um príncipe que queira se manter , aprender o poder não ser bom e usar ou não da bondade, segundo a necessidade." ( "O Príncipe", cap. XV)
Deve um príncipe ser liberal ou contido? Mão aberta ou sovina? O perigo do príncipe mostrar-se liberal é que ele termina por esbanjar dinheiro, o que conduz ao aumento dos impostos e taxas. Por vezes, o que por primeiro se apresenta como a política mais simpática, acaba se revertendo em prejuízo. É melhor, pois, gastar pouco para não ter que assaltar o bolso dos súditos. Um governante pródigo só se sustenta se dissipar o dinheiro dos outros, dos inimigos. É mais sábio levar a fama de miserável, de sovina, do que incorrer no pecado de ser dilapidador dos recursos públicos.
O mesmo ocorre quando ele se mostra indeciso em ser amado ou temido. Neste ponto Maquiavel é categórico: é melhor levar a fama de cruel e manter os súditos unidos, do que ser um governante piedoso que deixa a desordem imperar no seu sitio. Ele não tem duvida em assegurar que - se o príncipe não consegue ser amado e temido ao mesmo tempo - o melhor e mais seguro é ser temido. E isso se deve a natureza dos homens em geral: todos estão ao lado do governante quando sopram ares bons e as coisas navegam a contento. Basta, todavia, uma mudança do quadro, para todos se revoltarem. Pobre do príncipe que acredita nas palavras do povo! Logo, em tempos sombrios, todas as juras são esquecidas, todos os votos sagrados rompidos, e o príncipe se vê acuado. Somente o temor a ele o mantém, porque "o receio de castigo jamais se abandona".
A conseqüência deste seu raciocínio é que um soberano bom, íntegro, honesto, mantenedor da palavra, necessariamente não significa que ele será um bom governante. Bem ao contrário, uma tolerância excessiva, a negativa em empregar a violência, poderá fazer periclitar o estado, risco que um príncipe rude e perverso jamais incorre.
O que se deve evitar acima de tudo é atrair o ódio. E isso o príncipe consegue não expropriando os bens alheios nem ofendendo a honra dos súditos, visto que "os homens esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio". Qualquer um tolera melhor que lhe matem um parente seu do que lhe roubem o patrimônio.
Igual conselho se aplica à palavra dada, visto que o príncipe só deve sustentar uma promessa, mantendo o que disse ou confirmando sua assinatura ou jura, se for necessário aos interesses gerais do seu governo. Passado o motivo que o forçou a tomar aquele compromisso, geralmente num momento de perigo, o melhor a fazer é esquecer tudo.
A obrigação maior dele é vencer e manter o estado, não importando os meios utilizados para tanto: os meios justificam os fins. Se ele tiver sucesso nisso sempre será louvado e honrado por todos, porque o que importa é a aparência e o resultado final da sua política e não os pecados que incorreu ou os métodos de que ele se socorreu para mantê-la.
Deve, sim, cultivar a ferocidade de um leão e a astúcia de uma raposa (Leone i Volpe), ao tempo em que procura engrandecer-se frente ao seu povo por meio de grandes feitos, arrancando-lhe admiração com exemplos de ousadia, ainda que incorra em "piedosa crueldade".
Nestas condições, o príncipe deve temer conspirações? Ora se o povo, mantido contente e satisfeito, lhe é benévolo, dificilmente uma cabala de inimigos prospera. Se agrada a gente miúda e não desgosta os grandes, poucas coisas o perderão.
Dilemas do Príncipe - Deve ser liberal ou contido?
Conselhos de Maquiavel - É perigoso ser liberal. Ser gastador significa aumentar os impostos do povo, o que gera descontentamento. Melhor a fama de sovina do que a de pródigo.
Dilemas do Príncipe - Ser amado ou temido?
Conselhos de Maquiavel - Na impossibilidade de ser ambas as coisas, é melhor ser temido, pois é o medo do castigo quem mantém o povo quieto.
Dilemas do Príncipe - Deve ou não sustentar a palavra dada?
Conselhos de Maquiavel - Se uma promessa resulta em algo incômodo aos interesses do estado, é melhor esquecer o que se jurou cumprir.
Dilemas do Príncipe - Deve ou não temer uma conspiração?
Conselhos de Maquiavel - Somente se for odiado pelo povo e cair em desgraça junto aos poderosos da cidade.
O Príncipe Libertador
Chega-se assim ao fim do livro, ao capitulo derradeiro, o XXVI. É então que o leitor se surpreende e se comove. Até aquele momento o que leu pareceu-lhe obra de um cínico, um interesseiro sem escrúpulos, um oportunista amoral atrás de resultados políticos imediatos, alguém comprometido apenas com a "verdade eficaz", incapaz de defender uma idéia nobre. Um incrédulo que entendia a religião ou a moral apenas no que elas têm a contribuir para a ordem social e a estabilidade do governo e que enxergava a humanidade por detrás das lentes da desconfiança e da ironia. Um pervertido discípulo de Lúcifer, um prodigioso cérebro a serviço do engano e da trapaça que se abeberara das piores receitas das ações dos estadistas de outros tempos para ajudar os déspotas e tiranos a melhor dominarem o povo.
Eis que, na mais surpreendente reviravolta da literatura política que se conhece, neste derradeiro capítulo surge um outro Maquiavel. Um Maquiavel que deixa de ser maquiavélico para assumir-se como um patriota desesperado e apaixonado. Num repente tudo muda, ele não está difundindo a palavra do Diabo, mais sim está a espera de um Messias. O titulo do capitulo diz tudo: Exortação para procurar tomar a Itália e libertá-la das mãos dos bárbaros.
Vendo a sua terra natal assolada, pasto da rapinagem estrangeira, ele se indigna não haver no país inteiro nenhum homem-forte capaz de - centralizando o poder e fortalecendo o estado - vir a por cabo naquela situação de vergonha e humilhação. Lá estava ela, a pátria inerte, "batida, espoliada, lacerada, invadida", totalmente desgraçada. Falta-lhe um salvador. Um príncipe que, seja lá com que meios, forme um exército próprio, convocando a brava gente itálica para compô-lo, bom a pé ou a cavalo, que bem comandado venha a expulsar os "bárbaros" do seu sagrado solo.
Com isso, Maquiavel retomou as expectativas que Dante tivera dois séculos antes dele quando prognosticou a vinda futura de um líder, um Duce, que esmagaria o Papado e o Rei Estrangeiro (*), livrando a Itália da desordem. Com essa reviravolta inesperada, ele terminou alinhando-se entre os grandes escritores patriotas de todos os tempos. Para Leo Strauss, Maquiavel viu-se como um Moisés trazendo os novos mandamentos: um decálogo para libertar o povo do cativeiro estrangeiro, sendo que "O Príncipe" teria a função do cajado emancipador abrindo a passagem para que os itálicos, escapando do faraó opressor, reconquistassem a liberdade perdida.
(*) "Dio, anciderá la fuia com quel gigante che com lei delinqüe", Comédia, Purgatorio, Canto 33,43.
Exortação de Maquiavel a Lourenço de Médici, duque de Urbino
"Não se deve, pois, deixar passar a ocasião, a fim de que a Itália conheça, depois de tanto tempo, um seu redentor. Nem posso exprimir com que amor ele seria recebido em todas aquelas províncias que tem sofrido por essas invasões estrangeiras, com que sede de vingança, com que obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas. Quais portas se lhe fechariam? Qual italiano lhe negaria o seu favor?... A todos repugnam o bárbaro domínio.
Tome, portanto, a vossa ilustre casa esta incumbência com aquele ânimo e com aquela esperança com que se abraçam as causas justas, a fim de que, sob sua insígnia, esta pátria seja nobilitada e sob seus auspícios se verifique aquele dito de Petrarca:"
"Virtude contra Furor/Tomará Armas e Faça o Combate Curto/Que o Antigo Valor/Nos Itálicos Corações Inda não é Morto".
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